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Processo kraft poderá ser substituído no futuro

Entrevistas | Entrevista | 01.07.2009




Por mais de 100 anos, a indústria de celulose utilizou o processo kraft para dissolver a madeira e dela extrair seus componentes. Para os pesquisadores da irlandesa Queen’s University Belfast, no entanto, esse método pode estar com os dias contados, já que eles desenvolveram uma pesquisa que obteve bons resultados sem a utilização dos químicos do processo kraft, como soda cáustica e sulfito de sódio. “Nossa pesquisa é focada na investigação dos líquidos iônicos em um nível ainda fundamental”, explica Hector Rodriguez, um dos membros da equipe de pesquisadores.

Para ele, o primeiro passo dado nesse tema é muito importante, já que toda a indústria busca formas mais amigáveis ao meio ambiente para trabalhar seus processos, e os líquidos iônicos têm apresentado um enorme potencial como solventes. O componente utilizado foi o acetato 1-etil-3-metilimidazol ([C2mim]OAc), depois de suave trituração da madeira. A completa dissolução foi alcançada com o aquecimento da amostra em um banho de óleo. O processo pode ser acelerado com pulsos de micro-ondas ou irradiação de ultrassom. “Nós trabalhamos com a dissolução direta de madeira, evitando o uso, por exemplo, de condições cáusticas agressivas e a geração de resíduos perigosos”, afirma. Como os custos dos líquidos iônicos ainda são muito altos, a equipe de pesquisa agora deverá estudar um sistema de reciclagem dos solventes, etapa necessária para que o processo possa atingir, no futuro, uma escala industrial e competitiva.

O Papel – Por qual motivo sua equipe de pesquisas optou pelo estudo dessa área específica, que envolve a dissolução da madeira?
Hector Rodriguez – Atualmente, a indústria depende grandemente de matérias-primas originadas do petróleo e de outros recursos não renováveis. A biomassa na natureza − e especialmente a madeira − pode oferecer um acesso mais sustentável. É possível que os principais componentes da madeira (celulose, hemicelulose e lignina) se constituam em bases renováveis para o desenvolvimento de ampla variedade de químicos e de produtos avançados. Para usufruir plenamente dessa oportunidade, a dissolução da madeira e a separação de seus componentes são estágios cruciais.

O Papel – O senhor poderia expor os aspectos mais importantes da sua pesquisa?
Rodriguez – Nossa pesquisa concentra-se basicamente na investigação de líquidos iônicos, seja em seu aspecto fundamental, seja com vistas à sua aplicação. Entre os trabalhos em andamento está o desenvolvimento de líquidos iônicos com ingredientes farmaceuticamente ativos como plataforma para um paradigma alternativo ou a utilização da tecnologia de líquidos iônicos para o processamento de biomassa e biopolímeros, assim como de produtos derivados avançados.

O Papel – De que modo esse novo processo de dissolução difere daquilo que está sendo atualmente feito pela indústria de celulose?
Rodriguez – O novo processo consiste na dissolução da madeira triturada diretamente em líquido iônico, eliminando, com isso, a necessidade de, por exemplo, condições cáusticas agressivas e, portanto, a geração de resíduos perigosos, característicos do processo kraft. O líquido iônico usado é essencialmente não volátil, aceitavelmente não corrosivo e de baixa toxicidade. Em comparação às tecnologias em uso, as condições de operação necessárias no processo de dissolução com líquido iônico são mais brandas. O material dissolvido no líquido iônico pode ser facilmente precipitado na solução de forma fracionada mediante a adição de substâncias amistosas, tais como água e acetona, de modo a não haver o envolvimento de substâncias significativamente perigosas. Diferentemente dos métodos em uso, nos quais o foco recai na celulose, o processamento com líquido iônico pode converter também a lignina, mostrando-se promissor na utilização integral dos biopolímeros que compõem a madeira.

O Papel – A dissolução com líquidos iônicos já pode ser aplicada em larga escala para a produção de polpa?
Rodriguez – As experiências para a dissolução de madeira em líquidos iônicos são, por enquanto, realizadas apenas em nível de bancada. É primeiramente necessário o desenvolvimento de plantas-piloto para dar escala ao processo antes de qualquer aplicação em âmbito industrial. Devido ao custo expressivo do líquido iônico, um eficiente procedimento para sua reciclagem é absolutamente necessário em qualquer estratégia de ampliação de escala.

O Papel – Quais foram os maiores desafios em sua pesquisa?
Rodriguez – A recalcitrância da madeira tem sido certamente um problema. Encontrar um líquido iônico capaz de quebrar as ligações lignocelulósicas e manter os biopolímeros na solução sem degradação significativa tem sido um dos desafios. Outro consiste na pesquisa de solventes benignos capazes de produzir a precipitação fracionada de material rico em celulose e lignina pura. O objetivo final será a separação completa dos biopolímeros. Ainda outro desafio reside na descoberta de um procedimento de reciclagem do líquido iônico que seja mais eficiente em energia.

O Papel – Por que o processo kraft de dissolução continua tão amplamente utilizado mesmo com todas essas questões ambientais? Os líquidos iônicos poderão substituir completamente esse processo em um futuro próximo?
Rodriguez – O processo kraft continua amplamente utilizado porque não tem sido fácil encontrar alternativas adequadas em seus mais de 100 anos de história. A madeira é de natureza recalcitrante, o que dificulta seu processamento e a recuperação de seus componentes biopoliméricos. A falta de alternativas melhores explica por que a comunidade industrial tem tolerado o uso de químicos tão poluidores e a geração de resíduos perigosos. Nós acreditamos que a tecnologia de líquido iônico tenha potencial para substituir o processo kraft em médio prazo. É evidentemente necessária uma pesquisa subsequente para melhoramento do método e ganho de escala.

O Papel – Que tipo de madeira pode ser dissolvida com líquidos iônicos? O senhor acredita que o processo pesquisado pode ser eficaz também com o gênero Eucalyptus (o mais utilizado no Brasil)?
Rodriguez – Temos dissolvido uma extensa variedade de biomassa em líquidos iônicos. No caso particular de trabalho recentemente publicado, tanto o pinheiro americano (Pinus palustris) como o carvalho vermelho (Quercus rubra) foram dissolvidos em líquido iônico acetato 1-etil-3-metilimidazol. Essas duas classes de madeiras foram selecionadas como representativas de madeira mole (conífera) e dura (folhosa), respectivamente. Assim, como regra geral, o processo de líquido iônico deveria ser eficaz com madeiras de origens diferentes.

O Papel – Quais são as próximas atividades da pesquisa?
Rodriguez – Como já dito, desejamos chegar a uma separação total dos diversos biopolímeros que compõem a madeira. Por enquanto, foi conseguida apenas uma separação parcial. Estamos pesquisando o uso de aditivos ou de catalisadores para atuar melhor sobre as ligações lignocelulósicas e concluir com o melhoramento da dissolução e a separação dos biopolímeros. Outro importante aspecto atualmente em investigação é o desenvolvimento de alternativas para a reciclagem do líquido iônico de modo mais eficiente em energia do que a simples destilação usada atualmente.